v. 37 n. 80 (2022):

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                                                                           EDITORIAL

A socióloga argentina Elizabeth Jelín (2002) escreveu certa vez que os aniversários redondos de eventos históricos constituem momentos privilegiados em que o passado se torna presente, e em que rituais públicos de comemoração constroem e reconstroem memórias, historiografias e sentimentos sobre quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Data redonda sinaliza momentos em que diferentes atores expressam, interpretam, ressignificam e confrontam – seja no âmbito local, regional, nacional, e até mesmo internacional – sentidos de coletividade e pertencimento a algo maior que nós. As datas redondas são momentos simbólicos que materializam aquilo que o filósofo francês Ernest Renan chamava de “plebiscitos diários” necessários à construção da nação (RENAN, 1882).

O Bicentenário da Independência está na agenda deste ano e na pauta da Revista da Escola Superior de Guerra, que apresenta aos leitores cinco fóruns temáticos que levam à reflexão sobre o evento histórico da Proclamação da Independência do Brasil (1822), sobre as comemorações do Centenário (1922) e sobre os fios que entrelaçam outros eventos ocorridos ao longo dos 200 anos.

Inaugurando a revista do bicentenário, o fórum Forças Armadas, cultura e sociedade no centenário da Independência nos brinda com quatro produções que estimulam reflexões sobre a história brasileira, tendo como objeto temáticas que percorrem os símbolos da nação, imagens militares e o universo político-cultural da Primeira República, com destaque para o movimento tenentista. Com o olhar lançado sobre o universo militar e temas correlatos, foram convidados seis autores experimentados em produções acadêmicas ligadas ao escopo do fórum. É esse seleto rol de pesquisadores, em ordem de apresentação dos artigos, Jamylle de Almeida Ferreira, Wilson de Oliveira Neto, Francisco Alves César Ferraz, Fernando Silva Rodrigues, Andriete Cancelier e o editor convidado Eduardo Rizzatti. Abordando o passado de experiência e o registro da história nacional, os autores lançam questões e inquietações sobre a memória nacional, a identidade militar, o simbolismo, a cultura e a política de um país em construção, conduzindo o leitor a pensar criticamente sobre o papel dos militares nessa jornada.

No eixo temático Geopolítica, Fronteiras e Soberania do Brasil no século XXI, os autores Guilherme Sandoval e Paulo Visentini buscam delinear as bases fundantes de uma possível Estratégia de Segurança Nacional para o Brasil, aí incluído o Flanco Leste do Entorno Estratégico do País. É nesse contexto que, sob a égide das comemorações dos 200 anos da nossa Independência, urge ao estrategista pátrio formular a Grande Estratégia do Brasil, cujo imperativo categórico é posicionar o País entre as cinco maiores potências do planeta. Para tanto, partindo da condição especial de grande nação territorialmente satisfeita com suas fronteiras externas, impende ao Brasil construir seu projeto de desenvolvimento com base na resiliência e expansão dos seus núcleos estratégicos, aqui vislumbrados como os atores da tríplice hélice da inovação tecnológica, englobando as empresas, as universidades e o próprio governo. Ou seja, a ideia de núcleo estratégico projeta a imagem de todos aqueles segmentos econômico-financeiro-tecnológicos autônomos capazes de participar eficazmente da competição internacional, inserindo o País nas grandes cadeias globais de produção, conhecimento e valor.

O terceiro fórum, Independência do Brasil, Semana de Arte Moderna e Língua Portuguesa, como afirmações identitárias da Nação traça as veredas abertas da Independência do Brasil de 1822 até 2022. O artigo primeiro, de Lourdes Belchior e Mary Del Priore, versa sobre a importância de Maria Leopoldina – arquiduquesa da Áustria, a primeira esposa do Imperador D.Pedro I e Imperatriz Consorte do Brasil (1822 a 1826) – empoderada mulher que encantou os súditos brasileiros desde sua chegada ao Rio de Janeiro, assimilou o espírito de brasilidade e incentivou D. Pedro I a permanecer no Brasil e a proclamar nossa Independência. O segundo artigo, de Maria Célia Barbosa Reis da Silva, aborda o processo de decolonialidade das nossas artes: a ruptura com os modelos anteriores influenciados pelo eurocentrismo e a busca pelas nossas raízes culturais emanadas do povo, detentor das tradições, e a acepção da multiplicidade étnica, “macunaímica”, rica de nosso país. Todo esse instinto de nacionalidade – a aquiescência da convivência do antigo com o moderno, a incorporação e a relevância dos valores advindos de diferentes camadas sociais – foi contemplado por diversas manifestações artísticas e literárias na Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, durante o centenário da Independência. Arrematando o discurso do fórum, Luiz Antônio Senna discorre sobre a Língua Portuguesa Nacional, modificada pelo falar e enriquecida de sotaques e vocabulários advindos de todas as regiões do Brasil e dos povos que se entrelaçaram/entrelaçam em nosso território e que deixaram/deixam resíduos linguísticos no cotidiano nosso de cada dia.

O quarto fórum intitulado Direitos Humanos: 200 anos de avanços e recuos lança luzes sobre os passos e contrapassos das manifestações de proteção às liberdades individuais e à igualdade no acesso a condições mínimas de subsistência, como moradia, educação, trabalho, alimentação e a salvaguarda de direitos a todas as religiões, conforme estabeleceu nossa Constituição de 1891, capítulo I, artigo 5, parágrafo VI. São três artigos que problematizam questões atuais acerca da segurança de direitos no Brasil. Fernanda Duarte, Rafael Iorio e Ronaldo Lucas trazem para debate, no primeiro artigo, o constitucionalismo e a Independência do Brasil sob a perspectiva jurídico-histórica, dando relevo aos óbices da transição do regime colonial para a sociedade brasileira. A segunda reflexão acadêmica, desenvolvida por Lara Denise Góes da Costa e Paulo M. D’Ávila Filho, mostra novas perspectivas de compreensão dos pleitos sociais da minoria e dos valores culturais integrados à dimensão normativa dos Direitos Humanos. O último artigo, assinado por Ana Luiza da Gama e Souza, apresenta os desafios da segurança alimentar no Brasil por meio da análise socioeconômica e propicia um balanço entre as dinâmicas globais de concentração do mercado de insumos e os avanços e retrocessos regulatórios no Brasil.

O último fórum intitulado A trajetória da Administração Pública e da Defesa no Brasil esboça o caminho da administração pública por meio de três modelos: patrimonial, burocrático e gerencial. Os artigos desse segmento encerram as reflexões sobre o bicentenário da Independência. Frederico Lustosa da Costa traça um breve panorama das transformações por que passaram o Estado e a administração pública brasileira nos anos iniciais de sua formação, delimitando três momentos: Brasil Colônia, Reino Unido e Brasil independente. Paulo Roberto Motta, no segundo artigo, reflete como o mundo globalizado e conectado, marcado pela velocidade e instantaneidade, tem afetado a separação da vida privada e da profissional das pessoas. As novas tecnologias geram novos desafios para a gestão pública. No artigo de encerramento, Jacintho Maia Neto contextualiza a gestão no setor de Defesa nas necessidades clamadas pela sociedade do nosso tempo: o suporte na área de segurança pública, o auxílio nas catástrofes naturais, o apoio aos grandes eventos e o combate a endemias/pandemias como a dengue e a Covid-19.

A Escola Superior de Guerra, por meio de sua revista acadêmica, dedica o número 80, volume 37, à relevante celebração deste ano: o Bicentenário da Independência do Brasil. A publicação desta edição contou com a colaboração de pesquisadores do corpo permanente da Escola Superior de Guerra, que foram convidados a organizarem fóruns temáticos conforme suas áreas de atuação, em colaboração com pesquisadores de outras instituições de pesquisa e de ensino. Os fóruns se debruçam sobre diversos temas: História do Brasil, Geopolítica, Cultura Nacional, formulação de Políticas Públicas de Direitos Humanos e de Administração Pública da Defesa. Em comum, a proposta de pensar o Brasil neste Bicentenário, celebrando avanços, reconhecendo débitos com o passado, e identificando propostas que apontem para o potencial de uma nação que pretende ser o “País do Futuro”. Boa leitura a todos!

Maria Célia Barbosa Reis da Silva

 

NOTA: Para acessar a Edição Comemorativa do Bicentenário da Independência do Brasil nas 3 versões (português, inglês e espanhol), clique aqui.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1891)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1981. Brasília, DF: Presidência da República, [201]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/carrie_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso: 22 ago. 2022

JELÍN, Elizabeth (Org.). Las conmemoraciones: las disputas en las fechas “infelices”. Buenos Aires: Siglo Veintuno, 2002.

RENAN, Ernst. What is a nation?, p. 41-55. In: ELEY, G.; GRIGOR, R. (Ed.). Becoming national: a Reader. New York: Oxford University Press, [1882], p.41-55, 1996.

Publicado: 19-07-2024